Câmara Municipal de Lagoa Formosa

Notícias

08/11/2016

A igreja católica já havia percebido a necessidade de fazer chegar, a luz do evangelho e dos ensinamentos oriundos da doutrina que pregava

DESCOBRINDO A IDENTIDADE DE UM POVO, AS MISSÕES – CÉLIO FONSECA

Muitos foram os fatos que influenciaram na formação social e cultural do povo de Lagoa Formosa

Muitos foram os fatos que influenciaram na formação social e cultural do povo de Lagoa Formosa. Muitos deles passaram quase que no anonimato deixando no momento de seu acontecimento, a impressão clara que seria apenas um fato a mais e que certamente o tempo se incumbiria de levá-lo ao esquecimento. Interessante é que na verdade, os efeitos e consequências de tais fatos vieram a ser notados tempos depois.
Há de se destacar entretanto, o grande papel social e cultural de todos eles, pois conseguiram silenciosamente infiltrar no DNA cultural de povo, o que frutifica nos dias atuais em comportamentos e atitudes muito divergentes daquelas mapeadas na sociedade de décadas atrás.
No ensejo da comemoração por parte da comunidade católica do mês das missões, hoje queremos lembrar um momento importante da nossa história: as missões religiosas.
O início da caminhada de um arraial não é fácil em nenhum aspecto. As casas eram edificadas à base de armações de madeira. Quatro esteios de madeira lavrada a machado e paredes de bambus trançados, sem qualquer tipo de ferramenta. Algumas, mais bem acabadas, possuíam como reboco uma massa de terra misturada com estrume de bovinos, aplicado à mão, cobrindo as frestas frequentes entre os bambus trançados. Ruas marcadas por trilhas rasgadas pelos cascos de vacas que iam e vinham vagarosamente daqui para ali. Iluminação à base de azeite nas candeias, e nenhum tipo de diversão ou entretenimento. As casas do arraial eram como pousadas para os trabalhadores, os senhores que iam para a lida nas fazendas antes que o sol nascesse e voltavam de lá quando ele já tinha se escondido no horizonte.
O progresso não galopava rumo a esses arraiais do interior. A comunicação com centros maiores era difícil, o que dificultava o intercâmbio de informações, experiências e idéias que facilitassem a vida do povo do interior. A sociedade era predominantemente patriarcal, conservadora, nos modelos mais fechados possíveis. Tudo era feito segundo a batuta e o desejo dos coronéis das fazendas.
Neste tempo, a igreja católica já havia percebido a necessidade de fazer chegar a esse interior fechado, a luz do evangelho e dos ensinamentos oriundos da doutrina que pregava. Não havia como designar um sacerdote para que residisse nesses lugarejos distantes. Grande números dos religiosos que viviam no Brasil, eram oriundos de países europeus, principalmente da Itália que, seguindo a vocação e o carisma de suas congregações, partiam em missão para o até então selvagem interior do Brasil.
Estamos em terras lagoenses. Aqui não havia qualquer diferença dos outros muitos arraiais que se formaram pelo interior mineiro, na rota dos tropeiros ou nos locais de pousos de bandeirantes que buscavam as esmeraldas pelo sertão afora. Povoado de casas esparsas, ruas indefinidas cheias de trilhos. Durante o dia o arraial era pacato e silencioso. A noite, com a chegada dos trabalhadores rurais, o ambiente ficava mais agitado com uma ou duas bancas de truco quebrando o silêncio local. Vez por outra, uma roda de causos adornada por uma rebeca, espécie de instrumento de corda que foi o primo antigo do violino.
As celebrações religiosas eram bem modestas visto que não havia um religioso residente. Vez por outra, um sacerdote vinha para atender as confissões e celebrar a santa missa na casa de oração localizada onde hoje e é a Praça Nossa Senhora da Piedade, bem no centro da cidade. Pertencíamos à diocese de Uberaba. De lá um religioso vinha percorrendo os lugarejos um por um, cumprindo o ritual de celebrar a missa, fazer os batizados e os casamentos. O seu deslocamento se fazia ao lombo de animais cedidos pelos fazendeiros. Ele fazia um percurso longo que vez por outra durava meses. Cumpria sua missão em um lugarejo e seguia logo para o próximo que já estaria previamente determinado. Esse atendimento do sacerdote não lhe oportunizava chances de fazer um trabalho espiritual conforme desejava. Ele ficava muito pouco em cada lugar. Pouco tempo para fazer o trabalho que desejava.
Por isso mesmo, para esses lugarejos mais distantes dos grandes centros, onde a presença do sacerdote era quase que anual, organizava-se as missões. Era muito importante esse trabalho dos missionários nos pequenos lugarejos. A sociedade local era muito fechada. Os senhores das fazendas não aceitavam muitos conselhos ou ingerência qualquer que fosse na sua forma de conduzir a família. Era uma pobreza espiritual que dava dó.
De forma bem modesta, os moradores locais celebravam festas tradicionais. Os sacerdotes que partiam em missão, eram didaticamente preparados para irem pouco a pouco minando a resistência daquelas famílias conservadores e daqueles poderosos senhores que eram os últimos a cederem espaço para os religiosos cumprirem sua missão.
Nossa sociedade nesses idos tempos era muito conservadora. Os poucos relatos que chegaram a nós pela tradição oral, conta da enorme resistência do povo de então às palavras e ensinamento dos enviados na missão. Primeiramente um trabalho com as crianças, depois com as senhoras, depois com os jovens e quando todos já estavam devidamente motivados, chamava-se os poderosos senhores.
Era preciso motivar a presença desses homens de Deus naquele sertão quase inabitado. Por isso, numa atitude didaticamente perfeita, traziam a imagem de Nossa Senhora de Fátima cuja recente aparição em Portugal já tinha sido notícia por todo aquele sertão. Sob a proteção de Maria, é que conseguiam fazer todo o trabalho programado. A presença da imagem da virgem Maria impunha respeito para uma recepção calorosa e uma aceitação tranquila por parte dos moradores locais.
Estamos na década de 50, em meados da década. Em Lagoa Formosa chegou a notícia da futura visita dos missionários religiosos de N.S. de Fátima. A princípio sem muito alarde naquela desconfiada população. Aos poucos contudo, a formação de uma comissão organizadora, a distribuição dos trabalhos preparativos e a própria curiosidade foram motivando as famílias que, de uma hora para outra, passaram a viver intensamente os preparativos. Já é a antevéspera da chegada dos padres. A equipe local, orientada por vizinhos de outras localidades, cortaram um número grande de bananeiras que seriam fixadas nas ruas durante todo o percurso marcada para o cortejo da santa e dos sacerdotes. Bambusais foram assaltados e longas varas do vegetal foram cortadas e conduzidas com folhas e galhos finos para os logradouros. Grandes arcos foram formados por eles. Muitas bananeiras e suas folhas longas fizeram um bonito corredor entremeadas aos arcos longos que cruzavam as ruas de um lado para outro. Não tardou muito e os visitantes chegaram. Que festa bonita ! As crianças como não poderia deixar de ser, olhavam os padres e suas longa batinas que impressionavam os guris boquiabertos. As senhoras faziam reverências à imagem da Santa antes de pedirem a bênção aos sacerdotes de quem beijava a mão. Os homens eram mais arredios. A maioria deles ficava à distância parece até procurando se esconder entre as folhagens que adornavam as vias públicas. Passado esse primeiro momento de impacto, uma oração e um canto eram dirigidos por um dos padres devidamente preparado para isso. O cortejo tinha início serpenteado entre as alamedas do arraial, chegando à pequena igreja da praça central do lugar. Acontecia ai uma celebração para marcar o início oficial da visita dos missionários. Diversos momentos celebrativos aconteciam com muita oração e cantos. O povo ficava ali observando tudo.
O grande marco dessa primeira missão em nosso município, foi a quebra de uma estrutura fechada e sisuda que predominava até então nas famílias que aqui habitavam. Os religiosos com um jeito muito especial, reuniam-se com as crianças, cantavam, brincavam e faziam importante catequese. Primeiro eles. Depois foram convidadas as senhoras donas de casa. Um encontro na igrejinha local. As crianças menores que estavam sempre a tira colo, ficavam com outro religioso no pátio gramado fora do templo. Depois era a vez dos jovens. Rapazes e moças foram convidados para um papo com o outro padre. Aliás, cada um deles aprimoraram a retórica para cada camada das famílias. As jovens quase sempre se faziam acompanhar pelas suas mães pois não poderiam andar sozinhas. E assim toda a família foi sendo envolvida até chegar a vez do coronéis. Esses sim mereceram uma fala muito especial. Pouco a pouco o sacerdote encarregado ia minando a resistência e tocando na ferida. Dessa forma, cumpriu-se o período da presença dos missionários que partiram deixando marcas na sociedade, delineando um novo tempo.
Muita coisa pelo que se tem notícias mudaram nos carrancudos chefes de família de então. Uma nova forma de viver, com maior abertura para as senhoras e para os jovens, senhores mais maleáveis e capazes de pensar em ouvir a família nas decisões mais difíceis do dia a dia. Não foram mudanças drásticas. Foram pequenas conquistas que marcaram o início de um novo tempo.
Já na década de 60, pelos anos de 64/65, um outro período de missões aconteceu em nossa paróquia. Da mesma forma foi uma festa a chegada dos novos missionários e a imagem da Senhora de Fátima. Como ocorrera na vez anterior, bananeiras e arcos de bambus enfeitaram as ruas para o cortejo.
Já na semana que precedia a chegada dos missionários com a imagem de N.S. da Fátima, uma movimentação atípica poderia ser notada. Homens indo e vindo, mulheres comentando alguma coisa que estaria para acontecer. Os poucos veículos automotores que havia no lugar, não se mantinha sossegado Uma viagem chegava com um carregamento de bambu. Era uma carga enorme visto que, para fazer os arcos pretendidos, era preciso que o vegetal viesse com os brotos e pequenos galhos, o que dava um volume grande e disforme à carga. Já mais no final de semana, o veículo traria bananeiras com folhas bem verdes, para adornar as vias públicas. Não houve um só quintal que não perdesse várias bananeira, planta que abundava nos lotes locais pela facilidade de cultivo e pelo fruto que agradava a 10 entre 10 moradores.
Já estamos na ante-véspera da chegada dos missionários. Nas ruas um batalhão de trabalhadores e suas ferramentas afiadas e de cabos como se fossem envernizados dado ao trato de mãos calejadas e o suor dos homens que as empunhavam na lida nas fazendas. Enxadões, enxadas, picaretas eram manuseadas quebrando o silêncio das ruas até então desertas, que aos poucos ganhava o colorido de curiosos e palpiteiros para acompanharem a preparação. Já no início da rua dois senhores mediam a passos largos a distância que separaria os arcos de bambus. Ao mesmo tempo eram marcados os locais onde as bananeiras seriam fixadas em buracos que os homens cavariam. E daí a pouco o horizonte das ruas empoeiradas e mal traçadas tinham o adereço especial para ocasião não menos importante. Algumas senhoras picotaram papéis confeccionando bandeirolas pequenas que adornariam os arcos. Não eram os tradicionais papéis de seda apenas. Qualquer um era utilizado. Até jornais com letras miúdas, que normalmente serviam como embrulho para compras nos armazéns também eram usados.
Estamos na manhã do grande dia. Antes que o sol raiasse, uma comissão estaria passando pelo percurso averiguando se algum desordeiro não aproveitara a calada da noite e jogara ao chão qualquer um dos adereços.
Nas ruas uma alegoria toda especial. Não havia muitos veículos, então não era possível uma carreata, sonho dos organizadores. Como era muito grande o número de bicicletas, os seus proprietários resolveram enfeitá-las para participarem da procissão. Um incontável número delas ganhou as ruas nas primeiras horas do dia. Rodas com raios cheios de pequenos papéis azuis e brancos. Guidons com 2 bandeirolas nas mesmas cores. Pequenas tiras de papel presas ao quadro da bicicleta, davam um colorido especial. Ao selim, o orgulhoso proprietário, sorridente e feliz em participar. Todos tinham como destino, o terreno lá ao pé do morro da Santa Cruz, exatamente onde hoje se instala o Laticínios Formosa. Lá os ciclistas estariam reunidos para ocuparem o espaço logo após o carro que conduzia a imagem e os padres visitantes.
Tudo certo, era só esperar. Já a algum tempo o sol riscava o céu azul, quando uma enorme multidão estava na avenida Manoel Soares, um pouco a frente da caixa d’água, na encruzilhada da estrada que se bifurcava sentido Limeira e Monjolinho, esperando os ilustres visitantes. O sinal da chegada, seria a poeira que levantava da estrada e que podia ser vista bem de longe. Todos ficavam mirando o alto do morro Santa Cruz, vigiando qualquer sinal que denunciasse a aproximação de um veículo. E não foram dois ou três alarmes falsos. Havia sempre um ou outro piadista que se incumbia de começar o tumulto anunciado falsamente a chegada. Naquela multidão, qualquer insinuação de que um sinal foi avistado e o alvoroço era geral. O murmúrio corria rápido pelos ouvidos de todos e a inquietação era geral. O senhor José Atanásio, famoso fogueteiro, ficava lá bem distante do povo, com as peças pirotécnicas que anunciaria a chegada para todo o arraial. Até os vizinhos mais próximos, nas zonas rurais de Sapé, Retiro, Córrego Fundo, Pindura Saia, Lagoa Velha e outros locais, seriam avisados pelos foguetes.
Finalmente era chegada a hora. Lá no alto do Santa Cruz o sinal de poeira confirmava a chegada de algum veículo. Os batedores, que ficavam ao pé do morro, sinalizaram positivamente. Era o esperado cortejo. Todos miravam a estrada lá, bem à frente, onde a geografia do terreno permitiria enxergar. O veículo aparecera no horizonte, naquela via que parecia infinita naquela imensidão vazia de gleba. E lá vem ele trazendo os missionários e a imagem da santa. De repente alguém do meio da multidão começou uma oração mariana, ao que respondeu todos os presentes. Um canto especial, relembrando a aparição da Virgem Maria na cidade de Portugal era recitado a todo momento.
Chegados os visitantes, os olhares curiosos quase que saltavam das órbitas, vendo aqueles missionários e suas vestes enormes, contrastando com a brancura da imagem da virgem que reinava absoluta um pouco acima da linha de visão do povo, sobre um local especialmente preparado para ela.
Neste momento pudemos ver um novo fato na história do povo lagoense. Homens, mulheres, jovens e crianças, todos juntos reverenciando Maria mãe de Jesus. Ficaram de lado as má querências, desacordos, desconfianças e desafetos históricos e todos disputavam um pequeno espaço próximo à imagem naquele cortejo rumo à igreja.
Por um momento, coronéis tradicionalmente pouco simpáticos ao convívio com a família de um ou outro, lá estavam se juntando aos demais. Esse momento foi muito explorado por um dos missionários que, sabendo das questões de litígio entre um e outros, exaltou o valor da paz e do convívio saudável entre todos num lugar marcado por tradicionais desavenças.
Na igreja, um altar preparado com muito carinho esperava a imagem. A figura dos três pastorzinhos portugueses que foram testemunhas das aparições, estavam lá neste altar. Chegou a Santa e os missionários, mais algumas orações e os padres falaram marcando encontros com todos as famílias.
Dessa forma, a presença dos frades missionários trouxe muitos benefícios para a sociedade. A fala incisiva, as colocações certas, as “carapuças” que eles traziam para cada um, tudo faria a diferença na formação cultural de nosso povo. Os grandes coronéis, alguns de corações endurecidos e a cujas idéias não encontrava qualquer objeção, foram levados a quebrarem o próprio orgulho e se assentarem ao mesmo nível que os demais e traçarem linhas comuns para criação das famílias. Donas de casa ouviram falar de direitos, de liberdade, de responsabilidade e de papel importante da mulher na educação da família. Jovens aprenderam a encarar com responsabilidade o seu papel na sociedade e acima disso, o culto à liberdade responsável e ao papel que eles deveriam desempenhar como cristãos fortes e capazes. Crianças foram chamadas a participarem das celebrações e viverem ao seu modo, o convívio com a família e com as outras crianças.
Enfim, esse tempo marcou o início de uma nova fase na vida de Lagoa Formosa. É claro que não foi unanimidade, mas grande parte dos coronéis aprenderam ver a família de um modo diferente e um novo caminho a ser traçado no convívio entre os muitos moradores do lugar. Podemos dizer que esses coronéis ouviram dos missionários, verdades que alguém jamais ousara pensar em dizer a eles, para quebrar a estrutura pétrea gélida e absoluta que impuseram durante toda a vida. As mulheres também puderam descobrir que não eram simplesmente objetos de manuseio dos senhores grandes fazendeiros. E assim, temos certeza, um novo gene fora adicionado ao DNA da cultura e da identidade de nosso povo. Trabalho dos missionários… milagre mediado pela Mãe de Jesus pois muitas convicções arcaicas e tradicionais da sociedade, foram-se com a saudade daquela semana inesquecível em todos os sentidos.


Fotos

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